sábado, 23 de dezembro de 2017

"Riscos e Picotado": Um Elogio à Maturidade da Película



Numa das minhas mais recentes visitas à Cinemateca Portuguesa — em concreto, a sessão dedicada a RAILROADED!, noir de série B de Anthony Mann —, a folha de sala referia, explicitamente, que "A cópia que vamos exibir apresenta ruído de fundo em algumas passagens. Pelo facto pedimos desculpas"1. Esta chamada de atenção para um particular tecnicismo de projecção, para além da sua raridade nos tempos que correm, evocou-me uma determinada experiência do filme em sala que, nostalgicamente, nunca deixou de se conservar nos meus mais profundos afectos cinéfilos.

Ponto assente: eu cresci a ver filmes com riscos, sujidade e picotados em excesso, cue marks "manhosas" e pronunciadas, e bandas sonoras deterioradas. Mesmo que a memória infantil não seja a característica humana de melhor fiabilidade, nutro vivas recordações de ir ao cinema com os meus pais, e visualizar títulos como MASTERS DO UNIVERSO, ou QUEM TRAMOU ROGER RABBIT?, em cópias que conheceram abundante rodagem anterior. E, sobretudo, não tenho presente, nem por uma vez, ter testemunhado o cancelamento ou a interrupção de sessões por motivos de cópia sem condições de projecção.



Foi no seio dessa realidade que se fomentaram os meus gostos fílmicos e, quiçá inconscientemente, o meu apego pela componente analógica da Sétima Arte que, quase todas as semanas, partilho neste espaço. Assim, o facto de a cópia de RAILROADED! aparentar "defeito sonoro", que a folha de sala da Cinemateca prudentemente cuidou de alertar, nunca se revelou obstáculo à ideal fruição de um curioso film noir assinado por Anthony Mann.

Em suma, uma projecção sem interrupções nem sobressaltos. Tal e qual como nas minhas juvenis recordações de cinefilia.

O mesmo já não poderei afirmar sobre experiências recentes com o cinema exibido via DCP. Sessões interrompidas por formatos de projecção incorrectos, enquadramentos com nítido "efeito trapézio", inoportunos freeze frames antes e depois do obrigatório intervalo dos multiplexes, imagem com arrasto por óbvia ausência (ou desconhecimento de como o fazer) de calibragem de projector e/ou do ecrã... Uma série de incoerências que passa por normal perante o olhar mais leigo, mas que se cristaliza totalmente na imagem sem vida e de omnipresente brilho do digital.



Pesados os factos, e não obstante a esmagadora oferta disponível de projecção em digital, assumo aqui a minha preferência pelas velhinhas cópias em 35mm. Nas mãos de um projeccionista experiente e dedicado, nunca me restarão dúvidas de que até a exibição de um nitrato, acossado do "famigerado" síndroma do vinagre, proporcionará aprazível sessão.

Pois da perspectiva de um admirador da película, a descoloração deverá ser encarada como uma prova de maturidade das bobines; os riscos na emulsão são um atestado da confiança depositada naquele suporte por profissionais da mais variada índole; e os ruídos ritmados de uma banda sonora com décadas de uso não são mais do que o pulsar de vida oriundo da própria História do Cinema.

Notas:
1 De realçar que a folha de sala do passado dia 29 de Novembro, referente à projecção de outro filme de Anthony Mann, STRANGE IMPERSONATION, também destacava que o filme era exibido numa cópia em 16mm com "algumas deficiências a nível de som e imagem". O subsequente pedido de desculpas era quase escusado, pois mal se notaram as lacunas.

Imagens:
1 Exemplo de fotograma com riscos, poeira e picotado, Shutterstock.
2 Cue marks em fotograma de THE NASHVILLE SOUND, Streamline.
3 Andrea Wolf.

Sem comentários:

Enviar um comentário