sábado, 13 de janeiro de 2018

Filmes Perdidos — Uma Introdução ao Caso Português



De todos os temas que constituem matéria de estudo da Sétima Arte, o considerado Filme Perdido — isto é, uma obra cinematográfica, de curta ou longa duração, cujo paradeiro físico não é conhecido em qualquer arquivo fílmico, colecção privada ou acervo público — continua a ser de problemática explicação. Entre as entidades e os profissionais do ramo, a perda da banda sonora de um filme ou títulos com metragem incompleta são motivos suficientes para essa "catalogação". E quando as certezas existem, nem sempre são portadoras dos melhores cenários: por exemplo, é dado adquirido que 75% do cinema mudo norte-americano encontra-se irremediavelmente desaparecido1.

Na sua definição genérica2, passando pela recolha de elementos (imagens de produção, guiões, referências em imprensa escrita) e até à reconstituição precisa dos motivos que determinam um estatuto de Filme Perdido, a metodologia em torno deste objecto cinematográfico é, também, muito específica. Resumidamente, implica traçar o percurso de um título desde a sua estreia comercial, a averiguação dos locais por onde uma ou mais cópias viajaram, quem eram os proprietários dessas salas de exibição e que tipo de património — sobretudo, fílmico — foi legado aos seus descendentes e, por fim, que repositório foi assegurado para esses mesmos materiais. Paralelamente, a composição de uma alargada e variada lista de contactos, em arquivos e/ou cinematecas de todo o mundo, pode ser uma prática útil.



Neste âmbito, o "caso português" não está isento das mesmas particularidades que afectam as cinematografias de outras regiões3. Numa análise mais profunda, o problema dos filmes portugueses perdidos assenta em dois eixos primordiais: 1) com sumárias excepções4, verifica-se a ausência de quaisquer informações, compilações ou estudos inteiramente dedicados a este assunto; e consequentemente, 2) esta escassez impacta o próprio conhecimento da História do Cinema Português. Todavia, permanecem algumas inscrições históricas que explicam, por exemplo, a considerável quantidade de filmes portugueses perdidos do período do mudo (Manuel Félix Ribeiro mencionou, como principal causa, a venda de inúmeras bobines às potências da Segunda Guerra Mundial, para posterior extracção da prata incluída na emulsão da película5).

A partir das poucas fontes existentes que se aproximaram desta temática, a identificação e essência de cerca de meia centena de filmes portugueses perdidos é sintomática dos pontos fulcrais acima detalhados. Dessa "lista", constam obras realizadas por nomes como Ernesto de Albuquerque, Georges Pallu, Roger Lion, Rino Lupo, Reinaldo Ferreira, António Lopes Ribeiro, Chianca de Garcia e, até, Manoel de Oliveira. Ademais, da obra de Aurélio da Paz dos Reis (considerado o pioneiro do Cinema em Portugal, com A SAÍDA DO PESSOAL OPERÁRIO DA FÁBRICA CONFIANÇA, rodado em 1896) pouco restou até aos nossos dias, impossibilitando assim a composição exacta do seu percurso artístico. Ou seja, um conjunto de filmes que, sem dúvidas, e através de uma atenta consulta à parca informação disponível sobre os mesmos, permitirá relançar e esmiuçar novas leituras historiográficas sobre a nossa Sétima Arte.



Não sendo, a priori, publicamente perceptível o montante de esforço e recursos de que a Cinemateca Portuguesa se dotou para o estudo e pesquisa desta "filmografia perdida"6, também não nos faltam razões para acreditar que nem tudo está irremediavelmente desaparecido. Basta recordar o caso de OS FAROLEIROS (1922, Maurice Mariaud), do qual se desconheceu o seu paradeiro até à redescoberta de materiais integrais do filme em 1993, armazenados no Palácio do Bolhão, no Porto7.

Mesmo que, infelizmente, certos filmes não estejam ao nosso dispor para visualização, a noção da sua existência já é passo fundamental para uma compreensão mais exacta e acabada da cinematografia portuguesa. É com esse espírito de missão que o presente artigo serve de introdução a um dossier, a publicar no O Síndroma do Vinagre no decurso das próximas semanas, dedicado a filmes portugueses perdidos de relevo — uma "viagem" de (re)descoberta cinéfila à qual o parecer de leigos, historiadores e académicos será imensamente bem-vinda.

Notas:
1 A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos mantém um registo com mais de 7000 filmes mudos considerados perdidos.
2 A Fédération Internationale des Archives du Film (FIAF) ou sites de referência, como o Lost Films, não escondem as suas reticências em apresentar um conceito estanque para Filme Perdido.
3 Por exemplo, à semelhança do que foi aferido nos Estados Unidos, e conforme os registos disponíveis, uma porção substancial da produção nacional, anterior ao advento do sonoro, também está classificada como perdida.
4 Obras como O Cais do Olhar, de José de Matos-Cruz (1999, Cinemateca Portuguesa), ou Dicionário do Cinema Português 1895-1961, de Jorge Leitão Ramos (2011, Editorial Caminho), fornecem breves detalhes sobre os títulos dos quais se desconhece o paradeiro de qualquer material fílmico.
5 Ver Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949 (1983, Cinemateca Portuguesa).
6 O documento que explana as opções estratégicas e projectos de actividade da Cinemateca Portuguesa, divulgado em 2014, é omisso nesse item.
7 De realçar que a Cinemateca Portuguesa irá exibir este filme no próximo dia 23 de Janeiro, às 19h, na Sala M. Félix Ribeiro.

Imagens:
1 Fotograma de RAINHA DEPOIS DE MORTA, INÊS DE CASTRO (1910, Carlos Santos), considerado o primeiro filme português de reconstituição histórica, e do qual não é possível localizar materiais fílmicos.
2 Fotograma de A SEREIA DE PEDRA (1922, Roger Lion). Desconhece-se o paradeiro de qualquer material fílmico deste título.
3 Fotograma de OS FAROLEIROS.

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