terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Resolução para 2018: Mais Físico, Menos Digital



"There is no political power without control of the archive, if not of memory. Effective democratization can always by measured by this essential criterion: the participation in and the access to the archive, its constitution, and its interpretation."
Jacques Derrida, in Archive Fever: A Freudian Impression.

O novo ano civil vai no seu início. No que ao Síndroma do Vinagre diz respeito, os balanços de 2017 já foram realizados, e estes últimos doze meses não proporcionaram novidades de monta em torno dos coloquiais dilemas daquilo que o digital é capaz de, garantidamente, armazenar e conservar1.

Embora o propósito deste sítio seja, primeiramente, a discussão da Sétima Arte nas suas vertentes de preservação e restauro, permitam-me uma rara digressão a este posicionamento para temas mormente "quotidianos". A saber, a contemporânea era digital dos meios de informação humana, e respectivas implicações para o nosso presente e futuro.

Sem hesitações, há que afirmar que o panorama é inquietante e, ao contrário do que alguns autores afirmam, nada fulgurante. Os obstáculos derivam manifestamente dos principais métodos de comunicação (leia-se, correio electrónico e redes sociais) actualmente ao nosso dispor. E todos os dias, na forma como lidamos, guardamos e consultamos a informação através destas plataformas, não faltam exemplos para consubstanciar este parecer.



Os mecanismos de facilidade e acessibilidade do e-mail, que rapidamente suplantaram a carta, o fax ou o telegrama como meio de comunicação privilegiado pela Humanidade, são particularmente susceptíveis à repressão dos seus conteúdos2 (embora exista metodologia específica para a recuperação de mensagens); qualquer ficheiro digital é, em comparação com suportes analógicos, muito mais susceptível a ameaças humanas (vírus informáticos, pirataria, manipulação, furto...) ou a corruptibilidade da sua informação original; os automatismos informáticos, que regem as definições de publicação, cronologia e privacidade, da rede social mais popular do mundo podem revelar-se um pesadelo de pesquisa e acesso a informação; plataformas de captura de imagens em movimento, tais como o Snapchat ou o Facebook Video, produzem diariamente milhões de registos de limitada longevidade por defeito e/ou sem valências de arquivo das mesmas; as interacções por SMS ou no WhatsApp não primam pela durabilidade; e, há poucos dias, a Biblioteca do Congresso norte-americano anunciou que, desde 1 de Janeiro de 2018, deixará de armazenar todas as publicações partilhadas no Twitter, passando a fazê-lo unicamente numa aparente "base selectiva".

Esta realidade é, no limite, sintomática de que a percepção, enunciada em 19973, de um futuro imerso numa digital dark age — ou "época do esquecimento", tal como sugerido por Umberto Eco — assume estatuto de cenário realmente a equacionar.

Em conformidade com este raciocínio, é tentador divagar pela formulação de um exemplo simultaneamente cândido e provável. Imaginemos um estudante de Medicina, que dentro de vinte ou trinta anos será responsável pela descoberta da cura ou de um tratamento revolucionário para o cancro. Este mesmo jovem, à semelhança da esmagadora maioria dos seus contemporâneos, comunica sentimentos, motivações, modos de vida e paixões via SMS, e-mails, redes sociais, serviços de mensagens instantâneas, e com hábito escasso de registar, seja o que for, em suportes físicos (os "diários pessoais" definitivamente aparentam ser algo do passado, o recurso aos computadores portáteis e tablets é prática comum nas faculdades, e o Kindle ainda está longe de suprimir a cultura do livro em papel).



Neste futuro (presente?) intensamente digital, e face às incoerências supracitadas, que garantias teremos da possibilidade de formar o perfil biográfico deste estudante universitário? Como basear tal trabalho em fontes escritas, e viabilizar que o mesmo seja preservado para um ainda mais distante vindouro? Que certezas e soluções existirão, para além da narrativa oral, de conservação dos elementos digitais que permitam a composição historiográfica de um indivíduo com hipotética e absoluta influência para a Humanidade?

Ao fim e ao cabo — e não nos custa repeti-lo —, a dominação do digital continua a colocar em cheque não só a preservação das imagens em movimento (sobretudo, a produzida, pessoal e artisticamente, ao longo da última década), como também a memória do engenho e criatividade humanos e, ultimamente, arrisca o próprio conceito de Democracia que desejamos e estimamos.

Notas:
1 Uma preocupação a que nem o próprio Vice-Presidente da Google, Vint Cerf, é insensível.
2 Sublinhe-se o mediático caso, em 2016, dos e-mails de Hillary Clinton, ou as notícias de instituições empresariais que, deliberadamente, eliminaram listas de distribuição inteiras com os endereços electrónicos de milhares de clientes.
3 Sobre esta temática, recomenda-se a consulta de A Digital Dark Ages? Challenges in the Preservation of Electronic Information, por Terry Kuny.

Imagens:
1 github.com.
2 RocketStock.
3 Data center do MoMA, e-flux conversations.

1 comentário:

  1. Sempre pertinente, Sam. Excelente texto! Levantas diversos temas sobre os quais, normalmente, as pessoas não querem pensar, mas estão à nossa frente todos os dias.

    Bom trabalho.

    Cumprimentos cinéfilos :*

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