sábado, 23 de junho de 2018

BLOW OUT e os Mistérios do Analógico



Nas últimas semanas, o canal Cinemundo tem esporadicamente proporcionado ao auditório português recuperar BLOW OUT — EXPLOSÃO, thriller de 1981 realizado por Brian De Palma, com John Travolta, Nancy Allen e John Lithgow nos principais papéis.

Filme detentor de meritórios elementos estéticos, a revisão de BLOW OUT permitiu verificar como De Palma ilustrou um argumento dominado pela sua obsessão preferida — o voyeurismo, potenciado pela tecnologia audiovisual, no seio das sociedades modernas —, ao mesmo tempo que sobressai uma atmosfera de paranóia política, de pessimismo nacional (aquele brado aflitivo de Nancy Allen, enquadrado junto de uma gigantesca bandeira americana e que se converteu na imagem de marca do filme, pode muito bem ser interpretado como sintoma de desconforto patriótico) e de declarada homenagem às filmografias de Michelangelo Antonioni, Alfred Hitchcock, Francis Ford Coppola e Roger Corman.

A revisitação de BLOW OUT, após mais de uma década desde o meu último visionamento, serviu, também, de prova contundente de como um período de dez anos influencia as afinidades, os focos de interesse e as sensibilidades que regem a nossa cinefilia. Neste caso em particular, só agora se revelou evidente e (obviamente!) fascinante o modo como o manuseamento de métodos não-digitais de captação e edição de imagem e som, pelo personagem de John Travolta, determina o progresso da narrativa e manifesta os "mistérios encerrados no analógico".



Esta percepção, contudo, já havia sido enunciada no próprio ano de estreia do filme. Entre os críticos que, na altura, elogiaram o seu style over substance, Vincent Canby, para o The New York Times1, escrevia sobre a total e completa inquietação de BLOW OUT relativamente ao Cinema enquanto meio artístico: "exclusively concerned with the mechanics of movie making, with the use of photographic and sound equipment and, especially, with the manner in which sound and images can be spliced together to reveal possible truths not available when the sound and the image are separated". Em suma, um exemplo de metacinema quase sem se dar por isso.

Na história de Jack Terry, um sonoplasta de (nas suas palavras) "shitty movies" que, por acaso, capta no seu gravador de som o fatal acidente de automóvel de um candidato político, a verdade dos factos ganha outros contornos assim que o protagonista reproduz o áudio daquele momento. Despiste acidental ou atentado político? A partir daí, rodeado por uma "biblioteca" das bandas sonoras dos slasher movies em que trabalha, utilizará mecanismos como mesas de som, moviolas, animação fotográfica revelada em filme de 16mm no sentido de evidenciar uma teoria de conspiração que outros procurarão descredibilizar ou radicalmente eliminar.

Nesse processo, o espectador é testemunha do intenso "trabalho de laboratório" de Jack Terry. A atenção da câmara vira-se inteiramente para as mesas de montagem, onde som e imagem se mesclam até ao sincronismo primoroso, num labor de técnicas analógicas que recordam metodologias de Cinema em absoluto desuso e cativam os espíritos mais nostálgicos.



Mais do que um título inovador, BLOW OUT é distinto associado de uma senda de obras que dedicaram os seus argumentos e os seus protagonistas à descoberta da realidade dissimulada pelo grão da imagem analógica. Para além da flagrante inspiração em BLOW-UP: HISTÓRIA DE UM FOTÓGRAFO (1966, a genuína "alma mater" do filme de Brian De Palma), em que um fotógrafo de moda acredita ter captado um homicídio após uma insuspeita sessão fotográfica num parque público de Londres, a Sétima Arte sempre pareceu fascinada por aquilo que uma objectiva consegue, inadvertidamente, capturar.

Referimo-nos aqui às gravações ilícitas em O VIGILANTE (1974, Francis Ford Coppola), à sátira Hitchcockiana de ALTA ANSIEDADE (1977, Mel Brooks) ou à dissecação do Zapruder film em JFK (1991, Oliver Stone), culminando na digitalização de álbuns de família em MILLENNIUM 1: OS HOMENS QUE ODEIAM AS MULHERES (2011, David Fincher).



De onde advém esta atracção pela realidade oculta num fotograma ou numa banda sonora?

Provavelmente, a solução reside no próprio empenho a que o analógico obriga, sobretudo na tarefa de revelação da sua emulsão. A película revelada não é alvo imediato de edição, a imagem e o som assumem-se inéditos, e a sua trucagem implica igual destreza com equipamentos cinematográficos e técnicas manuais de montagem. No analógico, não existem filtros automáticos nem ferramentas de instantânea manipulação: a imagem original é sempre a mais verdadeira.

Notas:
1 Ver Travolta Stars in De Palma's 'Blow Out', publicado no The New York Times (consultado a 22 de Junho de 2018).

Imagens:
1 e 2 The Red List.
3 YouTube.
4 Cinephilia & Beyond.

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