sábado, 2 de junho de 2018

Things We Lost in the Fire



Da actualidade noticiosa que marcou a semana que agora termina, a minha atenção centrou-se, inevitavelmente, nos relatos do incêndio que deflagrou, na passada Segunda-feira, num prédio administrativo e infra-estruturas adjacentes dos Arquivos Nacionais das Filipinas (NAP). Seja pela distância geográfica que nos separa de Manila, ou pela revelação de que o incidente não consumiu, nem afectou, qualquer documento histórico ali alojado, certo é que este incêndio não conheceu particular realce por parte da imprensa internacional. A principal (e, até ver, única) excepção foi este artigo, publicado no site da Interaksyon, que detalha a orgânica da instituição e o património mais relevante que pode ser encontrado no acervo da NAP.

Essa indiferença (para além da dos media, há que acrescentar a ausência de reacções por parte do meio arquivístico) não se justificará apenas pelo contexto geográfico de Manila. À partida, e em jeito de comentário pessoal, não posso hesitar em atribuir uma quanta parte de responsabilidade ao menosprezo das sociedades "contemporâneo-digitais" — quase inconsciente, mas seguramente efectivo — pelo respeito e salvaguarda da memória humana.

Na verdade, o incêndio nos NAP também não pôde deixar de suscitar, neste espaço, uma reflexão em torno do material de índole cultural, singular e insubstituível, que a Humanidade já perdeu para as chamas. Assim como a evocação, numa autêntica "lista de horrores", dos principais incidentes, a nível mundial, deste género em arquivos fílmicos1 e respectivas perdas de títulos cinematográficos.

  • A 4 de Maio de 1897, um incêndio no Bazar de la Charité, em Paris, acidentalmente deflagrado durante a delicada operação de carregamento das reservas de éter de uma máquina de projecção Normandin et Joly, causou a morte de 129 pessoas (na sua maioria, membros da alta sociedade parisiense) e destruiu cópias de L'ARRIVÉE D'UN TRAIN EN GARE DE LA CIOTAT e L'ARROSEUR ARROSÉ, dos irmãos Lumière, que seriam projectadas durante o evento.

  • A 13 de Junho de 1914, uma explosão de grandes proporções nos arquivos da Lubin Manufacturing Company, provocada pela combustão espontânea de filmes em nitrato, destruiu todos os negativos e as cópias originais do catálogo fílmico da empresa. De acordo com testemunhos da época2, entre os filmes irremediavelmente perdidos pelo fogo estavam as únicas cópias de THE GOLDEN GOD (1914, Romaine Fielding) e OUTWITTING DAD (1914, o primeiro filme protagonizado por Oliver Hardy), e os negativos de obras como THE ESCAPE e HOME, SWEET HOME, de D.W. Griffith. Calcula-se que só tenham sobrevivido fragmentos de 29 títulos3 da Lubin Films.

  • A 9 de Julho de 1937, uma explosão num edifício de armazenamento da Fox Film Corporation, em New Jersey, arrasou por completo os 42 cofres que guardavam uma parte substancial de títulos do cinema mudo produzido pela 20th Century Fox até 1932. Contabilizaram-se perdas como a maioria das filmografias de Theda Bara, Tom Mix e Harry Carey, assim como os negativos originais em 35mm de WAY DOWN EAST (1920, D.W. Griffith) e SUNRISE: A SONG OF TWO HUMANS (1927, F.W. Murnau). O incêndio, apelidado pelo historiador Anthony Slide como o "mais devastador da História do Cinema"4, foi um catalisador em prol da adopção de medidas mais rigorosas para a preservação de filmes em nitrato.

  • Em 1967, um incêndio causado por curto-circuito, no cofre 7 dos arquivos da Metro-Goldwyn-Mayer, consumiu todas as bobines em nitrato ali armazenadas. Embora não se tenha propagado para os restantes cofres, o fogo destruiu as únicas cópias de títulos como LONDON AFTER MIDNIGHT (1927, Tod Browning), THE DIVINE WOMAN (1928, Victor Sjöström), SO THIS IS MARRIAGE? (1924, um dos primeiros filmes a exibir sequências em Technicolor) e os negativos originais de séries de animação como TOM AND JERRY.

  • A 30 de Maio de 1978, um incêndio nos arquivos da George Eastman House destruiu os negativos originais de 327 filmes, entre os quais STRIKE UP THE BAND (1940, com Judy Garland e Mickey Rooney).


Os registos de incêndios em arquivos cinematográficos, durante o Século XX, sucedem-se, e nem todos estão temporalmente distantes — basta recordar que o National Film Archive of India5 e os cofres da Universal Pictures6 foram afectados por ocorrências do género em 2003 e 2008, respectivamente.

Se as perdas, do ponto de vista cultural e artístico, são realmente de lamentar, há que defender uma inquietação similar para o investimento material e humano em função de uma inabalável reunião e preservação cinematográficas. Inquietação, dizia, quando a análise do presente que nos rodeia nem sempre se afigura como o mais animador. Numa era em que o cidadão, anónimo e contemporâneo, não parece motivado nem informado para o tema (tal como enunciado no segundo parágrafo deste texto), o panorama é ainda mais preocupante quando se verifica semelhante incúria personificada por organismos institucionais, esses sim com o dever de mais investir na conservação da memória histórica e cultural das suas nações.

A Índia, berço de uma cinematografia exemplarmente característica, só nos últimos anos começou a despertar para a importância da preservação do seu Cinema5, enquanto que em Portugal o debate em torno do financiamento de actividades culturais prossegue sem resolução consensual e satisfatória à vista7.

Inquietemo-nos mais, para que sejam cada vez menos as "coisas" que perdemos para o fogo.

Notas:
1 Uma lista extensiva de incêndios em cofres e arquivos pode ser consultada no site Atlantis Online.
2 Ver The Golden God; Lubin, Las Vegas and Romaine, publicado no site Classic Film Aficionados (consultado a 31 de Maio de 2018).
3 Ver Hollywood in Philadelphia? The Lubin Manufacturing Company collection at Free Library of Philadelphia, publicado no site Philadelphia Area Consortium of Special Collections (consultado a 30 de Maio de 2018).
4 in Nitrate Won't Wait: A History of Film Preservation in the United States, de Anthony Slide (2000, McFarland Classics).
5 ver 14 years after fire destroyed hundreds of films, lessons not yet learnt, publicado no site The Indian Express (consultado a 30 de Maio de 2018).
6 ver Archive prints lost in Universal fire, publicado na Variety (consultado a 30 de Maio de 2018).
7 Por exemplo, o Orçamento do Estado para 2018, enunciado a valorização patrimonial como eixo de actuação, previu apenas um total de 38,5% de contribuições a dividir por todo o sector da "salvaguarda, preservação e valorização do património classificado de interesse cultural". Não foi possível determinar, na legislação publicada, quanto dessa dotação foi alocado ao Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM). De notar, todavia, que o grupo parlamentar do Bloco de Esquerda pretende levar à discussão, no Parlamento, um projecto-lei que possibilite um reforço do financiamento ao ANIM.

Imagens:
1 National Fire Protection Agency.
2 Incendie du Bazar de la Charité. Le sinistre, pormenor de gravura da autoria de Fortuné Méaulle para o suplemento ilustrado do Petit Journal, publicado a 16 de Maio de 1897.
3 Cartaz promocional da Lubin Films, Motography, publicado a 31 de Maio de 1913.
4 Cofre da 20th Century Fox após o incêndio de 1937, Quarterly of the National Fire Protection Agency.
5 Destaque informativo sobre o incêndio na MGM, The Times Herald Record, publicado a 13 de Março de 1967.
6 Imagem promocional de STRIKE UP THE BAND, Metro-Goldwyn-Mayer.

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