sábado, 19 de janeiro de 2019

A Febre do Arquivo #2: THEY SHALL NOT GROW OLD (2018, Peter Jackson)



No âmbito do restauro e da preservação das imagens em movimento, a ética em torno dos "dilemas digitais" nestas actividades permanece, de modo aparente, como aspecto relativamente insondado nas diversas dissertações contemporâneas acerca do tema. Consoante os "interesses" e o posicionamento editorial de quem articula sobre este assunto, sobressai a tendência textual e ensaística (por exemplo, no lançamento de uma edição restaurada de um determinado título) de se realçar, sobretudo, os méritos artísticos de uma filmografia ou a sublimação de valores teóricos e académicos.

Existe, porém, e em contextos muito específicos, uma profusa bibliografia subordinada à ética do restauro cinematográfico. Desde os que demonstram eloquente oposição1 à aplicação de métodos digitais no tratamento de suportes analógicos, até às opiniões mais moderadas2 sobre as vantagens de novas tecnologias para a qualidade do produto final, encontra-se consenso na percepção de que, independentemente de uma maior ou menor influência digital, a conservação e o restauro fílmicos deverão assumir, sempre, três deveres fundamentais: a garantia da absoluta preservação dos materiais originais, a perpetuação/reprodução da imagem registada — possibilitando, assim, análises, definições de contexto e interpretações — para as gerações futuras e, consequentemente, um sentido de respeito histórico (ou seja, ausência de qualquer manipulação audiovisual) pelos mecanismos existentes à época da sua produção.



Posto isto, eis o mais recente desafio ético às prerrogativas acima elencadas: a saber, THEY SHALL NOT GROW OLD, documentário realizado por Peter Jackson que, invocando as memórias e vivências do contingente militar britânico no decurso da Primeira Guerra Mundial, "renova" mais de 100 horas de arquivo, actualmente preservadas pelo Imperial War Museum, em função das sensibilidades do espectador contemporâneo e do ensejo de relevar novas linguagens de exposição historiográfica. No caso em concreto, e aos materiais originais, adicionou-se cor, criaram-se efeitos sonoros e o formato fílmico foi ajustado para o padrão dos 24 frames por segundo (nos anos 1910, esse processamento estava na ordem dos 10 a 12 frames por segundo, daí a característica "aceleração" visível nos filmes daquelas eras).

Subjacente a um longo e meticuloso trabalho de restauro cinematográfico, importa salientar as intenções, para o projecto, do Imperial War Museum (a criação de um documentário "único"3), assim como a vontade expressa pelo próprio Peter Jackson de "atravessar as névoas do tempo e trazer estes soldados para o mundo moderno, de forma a recuperarem a sua humanidade – ao invés de meras figuras num arquivo vintage que se movem como as personagens de um filme de Charlie Chaplin"4.



Intenções à parte, é indiscutível afirmar que THEY SHALL NOT GROW OLD revela-se um filme realmente distinto e fascinante, que exibe uma sucessão de imagens impressionantes (e, muitas vezes, inéditas) do quotidiano de conflito e incerteza permanentes, de desespero e de tédio, da genuína dicotomia da vida e da morte, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Em suma, raramente vimos os soldados da Grande Guerra com semelhante qualidade de resolução, em tão profundo detalhe, num produto final que quase legitima o projecto inteiro.

Por outro lado, e de um ponto de vista inteiramente pessoal, a opção estética assumida em THEY SHALL NOT GROW OLD não contorna a sensação de estarmos perante um elaborado "filme de efeitos visuais", o produto da declarada — e, recorde-se, sancionada pelo Imperial War Museum — manipulação de imagens de arquivo em prol da formação de novos veículos de reflexão histórica. Nesse misto de fascínio e estranheza que o documentário exerce no espectador, logo se compreende que tal sentimento é provocado pelo dilema ético (isto é, o mencionado respeito histórico pelos materiais originais) acarretado por um trabalho de restauro assente no "upgrade tecnológico" de imagens de arquivo centenárias.



Seja pelo hábito adquirido de observar imagens em movimento, das décadas de 1910 e 1920, sem recurso aos retoques adoptados por Peter Jackson, ou por uma confessada reverência pelos processos fílmicos daquela era, certo é que Peter Jackson não me convenceu de que a película de nitrato, a preto e branco e a 12 frames por segundo, deixará de ser uma transposição transparente, concreta e neutra da realidade da Primeira Guerra Mundial.

É seguro concluir que, a nível formal, THEY SHALL NOT GROW OLD tem todo o potencial para revolucionar, consideravelmente, quaisquer produções semelhantes que possam conhecer a "luz da ribalta" nos próximos anos. Muito embora não se trate de uma novidade definitiva (essa dinâmica situa-se a jusante, por exemplo, das polémicas colorizações de títulos rodados a preto e branco5), também não é difícil perceber que, deste lado, este nunca será um conceito com um estatuto do tipo "primeiro estranha-se, depois entranha-se".

Notas:
1 Ver a opinião de Paolo Cherchi Usai em The Death of Cinema: History, Cultural Memory, and the Digital Dark Age (2001, British Film Institute).
2 Conforme argumenta Giovanna Fossati em From Grain to Pixel: The Archival Life of Film in Transition (2009, Amsterdam University Press).
3 Jackson's 'They Shall Not Grow Old' Doc Brings WWI Soldiers To Life in Glorious Color, Forbes (consultado a 16 de Janeiro de 2019).
4 in Prince William attends World Premiere of “They Shall Not Grow Old”, Royal Central (consultado a 16 de Janeiro de 2019).
5 É possível consultar uma lista exaustiva de colorizações em https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_black-and-white_films_that_have_been_colorized.

Imagens: Warner Bros. Pictures / Imperial War Museum

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