
Em 1917, Afonso Gaio, jornalista e escritor dramático lisboeta, leva à cena O Condenado, peça original em cinco actos, no Teatro Nacional. Essa encenação, a julgar pelas reacções da imprensa da época, conheceu particular sucesso junto de público e jornalistas. Na edição de 19 de Março de 1917 da Ilustração Portugueza, regista-se a seguinte impressão crítica:
«Interpretado de uma forma superior - pelos atores do nosso primeiro teatro de declamação, a peça do festejado escritor, póde dizer-se, sem contestação, é um dos melhores originaes portuguezes que se tem representado nos últimos anos. O seu aparecimento quasi no fim da época não permitiu que ela fosse admirada e aplaudida por muitos apaixonados do teatro verdadeiramente portuguez, que se guardam para o fazer na proxima época.»

Talvez motivado por este êxito, e com o Cinema a ganhar relevo no seio da actividade cultural do país nos inícios da década de 1920, Afonso Gaio, juntamente com o realizador Mário Huguin e financiado pela Lusa Film, adaptou a peça ao grande ecrã. Dessa decisão nasceu, portanto, O CONDENADO, um "grandioso drama de amor" situado nos arredores de Leiria, sobre as desventuras passionais de Maria do Rosário que, de forma surpreendente, conhecerão sossego nos braços do quase simplório José do Monte.
Se de O CONDENADO não é possível localizar o paradeiro de qualquer cópia, devemos realçar, obrigatoriamente, as várias curiosidades que o seu elenco e equipa técnica encerram. Nos bastidores do filme, Mário Huguin e Afonso Gaio puderam contar com as colaborações dos modernistas José Pacheco1, autor dos cenários, e de Stuart Carvalhais2, responsável pelos adereços e intertítulos.
Entre os actores, o destaque imediato vai para a participação de Almada Negreiros (sim, esse Almada Negreiros, no seu único trabalho enquanto intérprete de Cinema) no papel de D. António de Souto, um dos responsáveis pela desgraça da protagonista Maria do Rosário. A seu lado, pontificou o trabalho das actrizes Virgínia Silva (a "primeira-dama do teatro D. Maria II durante 27 anos consecutivos"3), Maria Sampaio (uma lisboeta de gema que conheceu sucesso na rádio e no teatro brasileiros4) e a actriz italiana Maria Thereza di Camponetti, retratada por Almada Negreiros no desenho abaixo reproduzido com a seguinte dedicatória: «A / Maria Thereza / di Camponetti / Excelentissima / camarada / a quem tenho a honra / de ter dado a minha / amizade incondicional».

Apesar de a opinião contemporânea não poder apreciar as emoções e os méritos artísticos de O CONDENADO, abundam as evidências de que esta transposição do teatro para o cinema, aquando da sua estreia em sala, não convenceu a imprensa de Lisboa. António Ferro, então crítico de cinema para o Diário de Lisboa, descreveu o filme como «infeliz, desolador, aflitivo»5, enquanto que a negativa recensão de Armando Ferreira, para o A Capital, possui o condão de nos revelar os principais locais de filmagem e motivos etnográficos da película:
«O CONDENADO teatro convertido em O CONDENADO fita levou comsigo a sua fraqueza de acção e de enredo. Diluído ainda em 9 partes, repetindo scenas com frequência, acaba de cançar por completo o espectador. Não tem o film grandes expressões, porque também não existem na peça: apenas o olhar cobiçoso, sanguinário, dum homem para a navalha; o braço que se ergue; o sacrifício de amor banalisado até ao extremo em todos os folhetins, e disse.
A parte artística do film revela um desejo grande de propaganda de monumentos. Vêem-se sucessivamente vários castelos, a Torre de Belém, o Convento de Cristo; alguns até apresentados sem outro pretexto senão a visita a esses monumentos. Mas pareceu-nos bastante ensombrada a fita, tendo apenas como esplêndidas scenas cinematográficas de paizagem um canto da estrada perto de Tomar, a paizagem do rio Nabão, um poente sobre a barra.
A festa dos Taboleiros aparece-nos como um 'film de atualidades', isto é, com o público, o nosso público saloio dizendo adeus ao operador, levantando os barretes..., perfeito cinema. Os films românticos, os bons films modernos não nos lembram a existência da máquina cinematográfica.(...)
Resta-nos falar da interpretação. Para esta como para o restante abusou-se, houve o excesso de patriotismo. Quiz dar-se ao film o mais belo dos nossos nomes de teatro.
Virgínia, Ana Pereira, Chico Redondo... mas sem se lembrarem de que o cinema não vibra das glórias passadas. A simpática figura de Virgínia no film nada faz; não tem máscara cinematográfica e o seu rosto pequeno, desaparece sem interesse nem glória na pautalha branca. (...) Almada Negreiros encarregado de estar em cima do muro, desempenhou-se com elegância e sobriedade do seu papel. (...)
Em resumo das nossas apreciações temos a dizer que louvamos em absoluto todas as tentativas de cinematografia nacional; que louvamos a propaganda dos nossos monumentos e costumes que se faz no film O CONDENADO; que louvamos a ideia de procurar nomes queridos das plateias para os intérpretes. E, embora não correspondendo os trabalhos obtidos a esta soma de boas vontades, não deixaremos de classificar O CONDENADO como um bom exemplar da nossa arte do cinema. Melhor seria se tivesse surgido antes dos FIDALGOS DA CASA MOURISCA, o film completo, desde o entrecho, encantador e genuinamente típico, à interpretação e 'mise-en-scène' sem uma falha.»6

O CONDENADO, constituído por nove partes, estreou a 2 de Maio de 1921, em Lisboa, no Cinema Olympia. Não se conhece o paradeiro de qualquer material fílmico deste título.
Notas:
1 Arquitecto, cenógrafo e pintor português, foi um dos precursores do Modernismo em Portugal ao lado de Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor e Ruy Coelho, tendo participado no primeiro número da revista Orpheu.
2 Pintor, desenhador, caricaturista e autor de banda desenhada português, foi colaborador em vários títulos na década de 20, publicando trabalhos na revista Ilustração, no Diário de Lisboa, Diário de Notícias, O Século Cómico, Contemporânea, O Domingo Ilustrado e no semanário Repórter X.
3 Sobre a vida e carreira de Virgínia Silva, recomenda-se a consulta da sua biografia disponibilizada pelo Arquivo Distrital de Santarém (consultado a 16 de Março de 2019).
4 in A Cena Muda, "Maria Sampaio e Sua Carreira", 1 de Janeiro de 1946, p. 20.
5 in Dicionário do Cinema Português 1895-1961, de Jorge Leitão Ramos (2011, Editorial Caminho).
6 in A Capital, N.º 3773 de 5 de Maio de 1921, p. 2.
Imagens:
1 Almada Negreiros e Virgínia Silva, fotografia de cena de O CONDENADO.
2 in Ilustração Portugueza, N.º 578 de 19 de Março de 1917, p. 240.
3 Desenho de José de Almada Negreiros oferecido à actriz Maria Thereza di Camponetti no decurso das filmagens de O CONDENADO. Colecção Fundação Calouste Gulbenkian.
4 Fotografia de cena de O CONDENADO.
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