sábado, 30 de setembro de 2017

Diletante Digital



"Who knows what will testify most cogently to our civilization tomorrow?", in TOUTE LA MÉMOIRE DU MONDE (1958, Alain Resnais)

Só muito recentemente me foi possível ler na íntegra a segunda edição de The Digital Dilemma1, estudo formulado pela Academy of Motion Picture Arts and Sciences (AMPAS), em 2012, com o intuito de elucidar um ponto de situação contemporâneo, e respectivas preocupações, em torno da preservação digital do trabalho audiovisual desenvolvido por autores e cineastas, e com particular enfoque para a produção independente e de documentários.

O documento2 sublinha, logo nas suas primeiras páginas, a óbvia constatação de que os recursos assentes em tecnologias digitais continuam a não providenciar a necessária segurança, nem fiabilidade, no que toca à preservação da memória cinematográfica da Humanidade.

Estamos ainda muito distantes da tecnologia que permita o armazenamento de uma obra fílmica por longo período de tempo3, sem significativa perda de conteúdo ou qualidade e com a menor intervenção de rotina possível; os formatos de arquivo digital continuam a multiplicar-se, cada um com a sua especificidade de leitura, resolução e obsolescência tecnológica; os custos (espaço físico, consumo energético, revisão constante da integridade de ficheiros encriptados, actualização de sistemas operativos, mão-de-obra) inerentes aos arquivos digitais são em tudo superiores aos métodos analógicos4; e o planeamento e orçamento de um filme continuam a menosprezar os detalhes sobre a sua preservação.

Se, para quem acompanha este tema regularmente, nenhum dos itens acima descritos se constitui como novidade, já a postura assumida pelos realizadores independentes, identificada no estudo da AMPAS, face à preservação futura das suas próprias produções assume-se como particularmente preocupante.


Imagem de um data center: serão estes os arquivos cinematográficos do futuro?

Para tal, The Digital Dilemma 2 invoca uma pesquisa junto de cineastas independentes, desenvolvida pela revista Filmmaker Magazine em 2010. Rapidamente, essa recensão concluiu que arquivo ou preservação não se assumiam como prioritários para os entrevistados. E ficou também patente o desconhecimento ou a indiferença sobre a elevada probabilidade das suas obras, inteiramente registadas em suportes digitais (ou "nativos digitais", para citar a definição exposta na publicação da AMPAS), desaparecerem de um dia para o outro.

Os exemplos deste risco são reais, mais abundantes do que se supõe e transversal a todos os contextos e geografias de produção.

Em Janeiro de 2017, durante um debate organizado pela Cinemateca Portuguesa, e no âmbito da jornada de conferências "O Lugar do Analógico e o Desafio Digital", Alexander Horwath, na altura director do Osterreichisches Filmmuseum, partilhou a sua experiência sobre a delineação de programas temáticos com títulos apenas disponíveis em DCP. Nesse sentido, TOMBOY (2011, Céline Sciamma) foi seleccionado, e definiu-se que o mesmo deveria ser projectado a partir do seu master digital. A produtora do filme não levantou quaisquer objecções. Alguns dias depois, Horwath recebeu a mensagem de que não era possível localizar o paradeiro da cópia mãe, talvez o disco rígido onde estava armazenado tenha avariado. "Pode ser em Blu-ray?", foi a alternativa sugerida.

Nem os consideráveis recursos económicos e tecnológicos de Hollywood são salvaguarda para a ocorrência de situações deste género. O exemplo mais mediático desta realidade data de 2012, quando a Pixar iniciou o desenvolvimento de uma edição Blu-ray 3D de À PROCURA DE NEMO5. O estúdio apercebeu-se, logo nos primeiros momentos desse trabalho, que alguns elementos gráficos utilizados em 2003 (ano de estreia do filme, o qual, à época de produção desta edição home cinema, ainda nem havia perfeito uma década) foram gerados por um software de animação que os novos sistemas de produção de efeitos 3D não eram capazes de reproduzir. Em suma, e no espaço de apenas dez anos, a Pixar deparou-se com a impossibilidade de acesso a materiais originais do seu próprio filme.


TOMBOY, de Céline Sciamma, estreado em 2011. De acordo com algumas fontes, desconhece-se o paradeiro do master digital do filme.

Mediante os factos, a que certezas chegamos e qual a postura a assumir perante o estado actual da preservação digital?

Fundamentalmente, é imperativo que tanto a indústria, como a própria sociedade civil, comecem a descartar a noção do digital enquanto bastião inabalável e solução fiável para a conservação e perpetuação, a longo prazo, dos conteúdos audiovisuais contemporâneos. Se a missão da preservação do Cinema é assegurar que, daqui a um século, seja possível visualizar um filme rodado em 2017, restam poucas dúvidas de que o digital, para já, não é opção.

Presentemente, e neste contexto, a maior esperança parece residir numa plataforma designada por Academy Color Encoding System (ACES)6. Este sistema possibilita a criação de uma cópia mestra de arquivo, em suporte digital, que não só mantém a integridade original da matriz cromática de um produto audiovisual, como também é dotada de substancial compatibilidade com outros formatos de vídeo e áudio. Embora ainda se encontre numa fase embrionária de desenvolvimento, o ACES tem todo o potencial para se converter na melhor ferramenta digital de preservação cinematográfica dos próximos anos.


Logotipo do Academy Color Encoding System, provavelmente a melhor esperança no campo da preservação digital.

Todavia, e enquanto durar este "diletantismo digital", a alternativa de confiança terá de recair nos formatos físicos ao nosso dispor: película, fita magnética e, se quisermos ser mesmo extremistas, o próprio papel. Não é descabido pensar, por exemplo, numa lógica de financiamento que facilite a "analogização" de filmes produzidos em digital: um caminho ideal para a minimização do risco de desaparecimento que o Cinema do Século XXI poderá enfrentar.

Se é inegável constatar que as tecnologias digitais têm auxiliado a concretização de horizontes criativos para realizadores da mais variada verve, deve-se também reduzir a possibilidade de a lógica binária dos "1"” e "0" determinarem a própria morte dessa produção.

Notas:
1 Edição original. Uma versão traduzida para Português do documento encontra-se disponível aqui.
2 Esta segunda edição aprofunda questões lançadas no primeiro volume deste estudo, as quais mereceram anterior atenção da minha parte.
3 De recordar que o prazo standard de preservação de um filme é balizado em 100 anos, ou seja, o tempo garantido por uma cópia em película em condições ideais de armazenamento.
4 Digital Film Preservation "12 Times Cost Of Analogue".
5 The Lost Picture Show: Hollywood Archivists Can’t Outpace Obsolescence.
6 Mais informações sobre esta tecnologia no site oficial da AMPAS.

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