sábado, 23 de setembro de 2017

Película 2.0

No momento em que a estreia do catalisador AVATAR, de James Cameron, está prestes a cumprir dez anos, e com todas as transformações que esse título imprimiu à lógica global de produção, distribuição e exibição cinematográficas, é seguro afirmar1 que a transição do uso da película para variados formatos digitais, que se multiplicaram desde 2009, foi relativamente pacífica e de vincada ventura para estes últimos.

O film projeccionist quase pertence ao grupo de actividades profissionais descontinuadas (excepção feita no seio de resistentes núcleos museológicos), os arcos voltaicos de Kinotons e Philips foram gradualmente desmantelados nas salas comerciais, as distribuidoras encontraram alívio financeiro na supressão dos custos associados ao transporte de cinco ou mais bobines por filme, e rapidamente eliminaram-se "departamentos" dedicados à legendagem, revisão e qualidade de cópias em 35 mm.

As dúvidas quanto ao "abraço" quase total, pela indústria, dos benefícios económicos proporcionados pelo digital são mínimas, e é um facto que essa mesma adopção permitiu aquilo que se tem denominado de "democratização" na produção e visualização de Cinema. Todavia, a ausência de pensamento de fundo sobre o impacto desta alteração tecnológica, para a experiência cinéfila, é gritante.



De que modo a coexistência de formatos influencia a forma de ver um filme? Quais são os custos estéticos de uma crescente incoerência de formatos de exibição? E em vez de evolução, estaremos a assistir à "mutação deficitária" da forma de arte?

Ciente de que estes são tópicos distantes das preocupações do Jornalismo e/ou Teoria do Cinema2, tampouco dos consumidores, e mais do que analisar a qualidade de um filme mediante o seu trabalho de fotografia em película ou por métodos digitais, o principal motivo das questões lançadas no presente texto prende-se, nomeadamente, com os contornos em que um título é exibido.

Como exemplo pragmático, recordemos o caso de STAR WARS: O DESPERTAR DA FORÇA.


(Comparativo de dois formatos de projecção de STAR WARS: O DESPERTAR DA FORÇA.)

Para o regresso ao grande ecrã do universo narrativo, criado em 1977, por George Lucas (um dos principais defensores do digital enquanto propulsor da indústria), J.J. Abrams deu preferência pela rodagem em película Kodak de 35 mm e 65 mm3 para, e nas suas palavras, definir uma "afinidade visual com a trilogia original" e "garantir a qualidade tangível"4 que apenas o celulóide proporciona.

Apesar da atenção mediática que a escolha estética de J.J. Abrams mereceu, o mesmo não se repercutiu no número de projecções em película. De acordo com algumas fontes5, STAR WARS: O DESPERTAR DA FORÇA apenas conheceu exibição, no formato idealizado pelo seu realizador (isto é, em 70 mm), em cerca de 30 salas, a maioria dos quais em cidades norte-americanas e por altura da estreia mundial do filme.

Em termos puramente estatísticos, é de estimar que tenham sido vendidos cerca de cem milhões de bilhetes6 a espectadores que não apreciaram STAR WARS: O DESPERTAR DA FORÇA no formato e qualidade de imagem originalmente visualizados pelo seu realizador.



É comum afirmar-se que uma pessoa nunca observou verdadeiramente a Mona Lisa ou a Capela Sistina se não o fizer presencialmente no Museu do Louvre e no Vaticano, respectivamente. Uma foto na Wikipedia não simula a textura de tinta sobre óleo, nem o postal turístico transmite a dimensão física de uma obra: esses veículos são essencialmente reproduções do artefacto. Seguindo esse raciocínio, e por definição, é lógico concluir que uma franja substancial das audiências de todo o mundo, e pela primazia das projecções em DCP - Digital Cinema Package (ou seja, a reprodução de filme revelado fotoquimicamente), não desfrutaram na totalidade de diversos outros títulos, rodados em película após 2009, que somente conheceram uma "exibição reprodutora" no momento das suas estreias comerciais.

Nesse sentido, não há que ter pejo em afirmá-lo: numa era de simultaneidade de formatos de projecção e com a iminente hegemonia do DCP, a visualização da Sétima Arte (nos seus adequados aspect ratios, suportes, resoluções e conjuntos formais) está seriamente ameaçada. E com essa realidade, é premente realçar a cada vez mais desvirtuada experiência cinematográfica para espectadores casuais, cinéfilos inveterados, críticos e académicos — em suma, para todos.

E este é um panorama que nem o próprio progresso digital aparenta conseguir encontrar resolução num futuro próximo. Basta sublinhar as "ondas" de dúvida que a peculiar apresentação de OKJA, produzido com a chancela da plataforma de streaming Netflix, no último Festival de Cannes suscitou entre a imprensa e a indústria.

Ao contrário do que muitos vaticinaram, a película está longe de desaparecer como matéria-prima de produção. Enquanto existir o contínuo apelo de realizadores cotados em Hollywood (Quentin Tarantino, Christopher Nolan, Paul Thomas Anderson, J.J. Abrams,...) pelo formato — não sendo de esquecer os cineastas portugueses que têm privilegiado o analógico7 —, o film stock vai continuar a pulular em grandes produções nos anos vindouros.

O presente texto não pretende advogar a superioridade, nem exclusividade, da película sobre o DCP. Ao invés, este repto (tremendamente utópico, reconheço-o, face às contemporâneas tendências sócio-económicas) atreve-se a sugerir a criação de uma mentalidade de exibição fiel à tecnologia de origem da obra cinematográfica — a projecção em película de e para títulos rodados em película, a projecção digital para filmes captados por câmaras digitais.

Notas:
1 Muito se tem escrito, filmado ou debatido sobre o tema.
2 Roger Ebert chegou a escrever sobre o "alarmante espectro da projecção digital nas salas comerciais", e de como os críticos de cinema ignoraram completamente o assunto.
3 Especificações que, tecnicamente falando, são optimizadas para uma projecção em película de 70 mm, ou no seu sucedâneo mais próximo, o IMAX.
4 Why has Star Wars turned its back on digital film?
5 Here's the tiny list of theaters showing The Force Awakens in the best possible formats.
6 Número de admissões apurado pela revista Forbes.
7 América (2010, João Nuno Pinto, 35 mm), Tabu (2012, Miguel Gomes, 16 mm), As Mil e Uma Noites (2015, Miguel Gomes, 16 mm e 35 mm), John From (2015, João Nicolau, 16 mm), Montanha (2015, João Salaviza, 35 mm), O Ornitólogo (2016, João Pedro Rodrigues, 35 mm), A Fábrica de Nada (2017, Pedro Pinho, 16 mm)...; Manoel de Oliveira raramente abandonou o formato até ao final da sua carreira.

Imagens:
1 Pinterest
2 Making Star Wars
3 AVSForum

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