sábado, 21 de outubro de 2017

Doclisboa '17: A Memória do Mundo Inteiro Cabe em Lisboa



No que à reflexão sobre preservação cinematográfica e pertinência histórica de arquivos fílmicos diz respeito, não existe género mais privilegiado do que o Documentário. Os exemplos disto mesmo são abundantes, sendo suficiente recordar títulos como os dedicados à obra e persona de Henri Langlois, ou de homenagem à Cinemateca Francesa que o próprio fundou, passando pela invocação de figuras do panorama nacional e culminando em filmes documentais que, desde muito cedo, alertaram a Humanidade para a importância da preservação e conservação das imagens em movimento.

Neste âmbito, e no nosso país, o Doclisboa revela-se como uma das "montras" mais diversificadas e iconoclastas na exibição de cinema documental. A comemorar os seus quinze anos de existência por estes dias, não deixa de ser curioso verificar, e imperativo sublinhar, o modo como a programação do Festival de 2017 (inadvertidamente ou não, só a sua direcção o poderá sentenciar) se debruça sobre estes temas. Seja numa abordagem directa ou por pura inferência, esta será, muito provavelmente, a edição que, no historial do evento, mais espaço de exibição proporciona à introspecção enunciada na primeira frase deste texto1.



Senão, vejamos o que nos oferece a selecção do Doclisboa 2017.

Desde o nitrato conservado pelo frio polar e recuperado para o "calor do projector" de DAWSON CITY: FROZEN TIME (Bill Morrison) à memória da História recente da Guiné-Bissau resgatada em SPELL REEL (Filipa César); da projecção de Cinema enquanto meio de resistência política em SEA OF CLOUDS (George Clark) ao "restauro cinematográfico" de um projecto nunca concretizado por André Bazin em LE FILM DE BAZIN (Pierre Hébert)...

Ou, ainda, a revisitação de Bárbara Virgínia, a primeira mulher a realizar em Portugal, e dos "sobreviventes" 26 minutos sem som do seu TRÊS DIAS SEM DEUS; da reciclagem de película em 16mm de MIROIR SÉB FRAGILE! (Sirah Foighel Brutmann e Eitan Efrat) até ao contexto político das imagens de arquivo agregado em NO INTENSO AGORA (João Moreira Salles); e, last but not least, teremos direito à exibição da versão restaurada de GRANDEUR ET DÉCADENCE D'UN PETIT COMMERCE DE CINÉMA (Jean-Luc Godard).



Importa, igualmente, vislumbrar a logística em torno da retrospectiva integral dedicada à cineasta checa Vera Chytilová como uma genuína ode ao mester da projecção em película. Para a sua concretização — e de acordo com fonte da direcção do Doclisboa —, viajaram para Portugal nada mais nada menos do que cerca de 400kg de filmes de Chytilová em formatos analógicos. Numa era em que os festivais de cinema também aderiram, quase incondicionalmente, ao DCP, eis um singular volume de película a ser projectado nos onze dias do certame.

Formular um pun ao slogan do Doclisboa é irresistível: em Outubro, a memória do mundo inteiro cabe em Lisboa. E, pela sua edição de 2017, também há lugar para muito Cinema sobre e em película.

Notas:
1 Em 2012, o Doclisboa organizou uma mesa redonda acerca deste tema, cujo resumo foi publicado neste blog.

Imagens:
1 DAWSON CITY: FROZEN TIME, Hypnotic Pictures.
2 SPELL REEL, Filmes do Tejo II.
3 Organização das bobines de filmes de Vera Chytilová, na Culturgest (foto de Edgar Ascensão).

[Agradecimento: Edgar Ascensão.]

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