sábado, 14 de outubro de 2017

O Que Seria da Vida Sem Ray, Ghatak ou Dutt?



Termina hoje, e a decorrer desde o dia 7 de Outubro, a terceira edição do Film Preservation & Restoration Workshop India, fórum que congregou, no Prasad Film Lab na cidade de Chennai, um conjunto de oradores, técnicos e académicos debruçados sobre as melhores práticas e teorias de preservação e restauro de obras cinematográficas em película.

Este evento, organizado em parceria com uma série de instituições "de peso"1, releva, imediatamente, três importantes benefícios: o sócio-profissional, através da instrução de pessoas naturais da Índia (e o workshop conta, também, com formandos oriundos do Sri Lanka, Nepal e Bangladesh) para a identificação do estado físico, conservação e restauro de títulos produzidos, em nitrato e/ou celulose, naquele país; o material, ou seja, a própria preservação dos arquivos fílmicos indianos; e, por fim, o cultural, na forma como esse know-how se tornará no garante da perpetuação memorial de um agregado filmográfico ímpar.



Se outros motivos de força maior fossem necessários, a organização do Film Preservation & Restoration Workshop India sinaliza a premência do "caso indiano" no que a preservação diz respeito. O Cinema da Índia, possuidor de exclusiva iconografia e contexto geográfico ainda mais particular, continua a debater-se com recursos de inquietante escassez e um nível pueril de consciencialização para o tema.

Numa indústria que produz, anualmente, mais de 2000 filmes em 36 idiomas diferentes, e localizada numa nação cujas condições naturais (leia-se, humidade e calor extremos) não são as mais propícias para o armazenamento de bobines de película, a Índia apenas iniciou o trabalho da preservação do seu Cinema em 1964, com o estabelecimento do National Film Archive of India (NFAI).

O notável P.K. Nair2 foi uma das poucas personalidades, no país, a destacar e a lutar por práticas de conservação. Paralelamente, e de acordo com algumas fontes, estima-se que 70% a 80% de todo o cinema produzido até aos anos 50 esteja irremediavelmente desaparecido3, e existe um índice de filmes, exibidos comercialmente nos anos 80 e 90, dos quais se desconhece o paradeiro de uma única cópia.

O relato cronológico da preservação do Cinema da Índia não é, contudo, apenas feito de uma exaustiva listagem de defeitos e perdas insubstituíveis.



Em 2015, o mediático restauro da Trilogia Apu, de Satyajit Ray, foi um importante atestado da actual capacidade de desempenho na Índia para a preservação e restauro da sua memória cinematográfica. Mobilizando a participação de entidades como a Cineteca di Bologna, a Janus Films ou os arquivos da Academy of Motion Picture Arts and Sciences, e com o espírito empreendedor de Shivendra Singh Dungarpur, fundador do Film Heritage Foundation, à cabeça do projecto, três das obras mais importantes realizadas por Ray podem ser, hoje em dia, observadas na totalidade e em completo respeito pelos seus formatos analógicos originais.

Os frutos deste trabalho, assim como das anteriores edições do Film Preservation & Restoration Workshop India, são já palpáveis e marcantes: o NFAI adquiriu, o ano passado, as cópias de quatro filmes de Ritwik Ghatak que nunca conheceram distribuição comercial4, com o intuito de proceder ao seu restauro; PYAASA, clássico de culto realizado em 1957 por Guru Dutt, foi restaurado digitalmente, fotograma a fotograma, por uma produtora indiana e exibido na secção Venice Classics do Festival de Veneza de 2015; e já existem cópias restauradas de diversos títulos essenciais do Cinema da Índia, tais como MOTHER INDIA (1957, Mehboob Khan) ou BABRUVAHANA (1977, Hunsur Krishnamurthy).

Entre o que tem sido reparado, a catalogação do que se perdeu e a esperança de uma redescoberta, qualquer cinéfilo deverá regozijar-se com o presente e futuro afortunados da herança cinematográfica da Índia. Pois a vida não seria a mesma sem os filmes de Satyajit Ray, Ritwik Ghatak, Guru Dutt, entre muitos outros.

Notas:
1 São parceiros deste workshop instituições como The Film Foundation’s World Cinema Project, L’Immagine Ritrovata, Academy of Motion Picture Arts & Sciences, Cinemateca francesa, Imperial War Museums, Cineteca di Bologna e Kodak.
2 O documentário CELLULOID MAN, realizado em 2012 por Shivendra Singh Dungarpur, é uma boa introdução à vida e obra de P. K. Nair.
3 Por exemplo, das 124 longas-metragens e 38 documentários, produzidas nos anos do Cinema Mudo em Chennai, nenhum destes filmes sobreviveu até aos nossos dias.
4 KOTO AJANAREY, BAGALAR BANGODARSHAN, RONGER GOLAM e DURBAR GATI PADMA.

Imagens:
1 Pormenor do flyer de apresentação do Film Preservation & Restoration Workshop India.
2 Perfil do Facebook do Film Heritage Foundation.
3 Janus Films.

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