sábado, 2 de dezembro de 2017

Lost TV



Ao longo de mais de meio século, o jornalismo e o pensamento crítico têm debatido os méritos da difusão televisiva, nas suas vertentes generalistas, de ficção, documental ou de "variedades", e com particular enfoque no conceito, maioritariamente anglo-saxónico, da Golden Age of Television1. Todavia, aparenta ser evidente a ausência de um estudo aprofundado, com os respectivos e necessários alertas, sobre as especificidades de conservação e acessibilidade de conteúdos produzidos para Televisão.

Ao contrário do Cinema, no qual a película de nitrato e, posteriormente, de celulóide foram os métodos reinantes para produção e preservação, a Televisão, praticamente desde a sua invenção, sempre se debateu com dilemas inerentes a uma diversidade de formatos de emissão, registo e arquivo. Talvez por esse motivo, e aliado a uma ausência de apreensão em torno dessas actividades pelos responsáveis de networks de todo o mundo, o estado de conservação de muita da difusão televisiva do Século XX encontra-se em risco ou, simplesmente, desaparecida.

Tendo em conta que, até 1939, as emissões não eram gravadas pela inexistência dessa prática nas estações televisivas, não existe qualquer registo de todas as transmissões até àquela data. Para além disto, e quando os conteúdos do pequeno ecrã já eram alvo de gravação em formatos como película, o Cinescópio ou fita magnética, é sabido que casas tão conceituadas como a BBC e a NBC levaram a cabo aquilo que ficou designado como wiping (o apagamento, reutilização ou destruição de telegravações), o qual era motivado pela falta de espaço de armazenamento, escassez de materiais de gravação ou ausência de direitos de retransmissão de programas.



Da junção destes factores, e sem ser necessário empreender uma pesquisa exaustiva, rapidamente se encontram exemplos notórios de produção televisiva considerada como perdida. Senão, vejamos:

  • no Japão, não é conhecido o paradeiro de 31 episódios da série original de 1973 do popular personagem DORAEMON. De acordo com algumas fontes, acredita-se que esse material ter-se-á perdido após a falência da sua produtora, a Nippon TeleMovie Productions;
  • no Reino Unido, 97 episódios das primeiras duas temporadas da série DOCTOR WHO estão considerados como perdidos. A BBC já anunciou que não consegue localizar esses programas nos seus arquivos. Existem, contudo, registos áudio efectuados pelos fãs da série;
  • só é conhecido o paradeiro de um episódio da série de ficção-científica A FOR ANDROMEDA;
  • devido ao wiping que se praticava na BBC, grande parte das emissões do popular programa de divulgação musical TOP OF THE POPS não chegou aos nossos dias. Entre as transmissões apagadas ou destruídas, contam-se a última aparição televisiva ao vivo dos Beatles, assim como as estreias de David Bowie ou dos Pink Floyd2;
  • nos Estados Unidos, não é possível localizar episódios de programas célebres como THE DICK CAVETT SHOW, THE ED SULLIVAN SHOW, JEOPARDY! ou SESAME STREET. Neste território, o caso mais relevante é o de THE VAMPIRA SHOW: apresentado pela icónica Vampira, não se conhece o paradeiro de qualquer episódio gravado da primeira série de terror exibida nos EUA3;
  • a transmissão original da missão espacial Apollo 11, onde Neil Armstrong se tornou no primeiro homem a pisar a Lua, registada em slow-scan television (com melhor resolução de imagem) está considerada como perdida;
  • em Espanha, as gravações de centenas de episódios do popular concurso UN, DOS, TRES... RESPONDA OTRA VEZ foram destruídas ou estão perdidas.

Desta análise histórica, e encarando também o presente e futuro de diversas implicações tecnológicas, depreende-se que os desafios da preservação televisiva são mais melindrosos que os do Cinema. E para a eficaz concretização dessa tarefa, revela-se premente balizar e compreender três eixos essenciais: a gravação (recording), conservação e acesso futuro de dezenas de horas diárias de emissão.



Nesse particular, e (agora) à semelhança do que acontece com a Sétima Arte, a produção televisiva do Século XXI, maioritariamente em formatos digitais, acarreta novas problemáticas que não aparentam ter resolução a médio prazo. Programas de inegável valor artístico, como HOUSE OF CARDS ou STRANGER THINGS, são disponibilizadas ao grande público através de plataformas assentes em streaming e/ou cloud-based e, numa fase posterior, em edições home cinema. Contudo, mesmo que o risco contemporâneo de perda de conteúdos seja menor, a conservação dos masters originais dessas séries está longe de ser realisticamente assegurada.

Apesar dos riscos identificados, o panorama actual da preservação televisiva ainda permite (faça-se justiça!) encontrar a adopção de boas práticas. O caso da insígnia Netflix, e de como, em 2014, decidiu submeter a série ORANGE IS THE NEW BLACK em VHS para conservação pela Biblioteca do Congresso, revela que os "velhinhos" métodos de arquivo de materiais audiovisuais não estão assim tão obsoletos.

Notas:
1 Expressão cunhada por Anthony Slide, na obra The Television Industry: A Historical Dictionary (1991).
2 Uma das principais forma de redescoberta de programas televisivos é através de gravações feitas por particulares que só mais tarde conhecem a luz do dia. É exemplo disso a recuperação de uma interpretação de Jean Genie, por David Bowie em 1973, e que esteve perdida durante décadas.
3 O único material conhecido desta série é um excerto da abertura, disponível para visualização no YouTube.

Imagens:
1 Arquivos de Televisão.
2 THE VAMPIRA SHOW, AFS ViewFinders.
3 Cópia em VHS da série ORANGE IS THE NEW BLACK, The Verge.

1 comentário:

  1. Excelente análise e pesquisa, Sam. Meu rico Doraemon que está perdido. :(
    Muito a propósito a temática deste post.

    Continua o bom trabalho.
    Cumprimentos cinéfilos :*

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