quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Filmes Perdidos Portugueses: RAINHA DEPOIS DE MORTA (1910, Carlos Santos)



Desde as suas origens, o Cinema Português enveredou, frequentemente, pela concepção do denominado Filme Histórico. Nesse contexto, as primeiras co-produções cinematográficas entre Portugal e Espanha (BOCAGE, de 1936, realizado por Leitão de Barros), a exaltação de propaganda nacionalista (CAMÕES — ERROS MEUS, MÁ FORTUNA, AMOR ARDENTE, também de Leitão Barros, e estreado em 1946), as divagações esotéricas (A MALDIÇÃO DE MARIALVA, de 1991, realização de António de Macedo) e os exercícios pedagógicos (PEREGRINAÇÃO, 2017, de João Botelho), são casos notórios das variadas intenções que o nosso cinema reservou para este género.

A afeição pelo filme histórico conheceu, inclusive, particular incidência nas primeiras décadas do Século XX, num "movimento" encabeçado pelas principais filmografias europeias, nomeadamente em França e Itália. Foi, provavelmente, a partir dessa influência que surgiu RAINHA DEPOIS DE MORTA, a primeira produção do espírito empreendedor de Júlio Costa, fundador da Empreza Cinematographica Ideal.

Estreado no Salão Ideal, a 23 de Setembro de 1910, e revelado com o título "D. INÊS DE CASTRO", estima-se que RAINHA DEPOIS DE MORTA foi produzido com um orçamento de seis mil réis e composto por 400 metros de metragem1 — ou seja, a duração de uma curta-metragem. Para além de algumas breves curiosidades (por exemplo, este título assinalou a estreia no grande ecrã de António Silva, que mais tarde se popularizaria, com profundas raízes no imaginário nacional, em A CANÇÃO DE LISBOA e O LEÃO DA ESTRELA), pouca informação restou até aos nossos dias sobre este filme perdido.



É a partir das memórias do realizador Carlos Santos — que, nesta película, também encarnou D. Pedro I — que nos chega o relato mais completo e interessante da produção de RAINHA DEPOIS DE MORTA. Para além de confessar a sua prática limitada de Cinema, com respectivo desdém pelos resultados finais, e da percepção de alguns dos locais visitados para filmagens de exteriores (Campo Grande, Calçada de Santo André, Largo do Município), o testemunho de Carlos Santos, que abaixo se destacam alguns trechos, desvenda, de modo curioso e animado, os meandros da então pueril arte do Cinema em Portugal2:

«Quando aí por 1910 o meu amigo Raul Ferrão, ilustre oficial do nosso exército e categorizado funcionário da Companhia dos Tabacos, me abordou para me confiar a direcção e execução dum filme arquitectado pelo Rafael Ferreira sobre a vida amorosa da infeliz e desditosa Inês de Castro, "a mísera e mesquinha que depois de morta foi rainha", recebeu da minha parte, num desconcertante assomo de indignada revolta, a categórica recusa à gentileza do seu convite [...]. A minha recusa, porém, obstinadamente defendida pela absoluta ignorância deste sector artístico, foi levada de vencida pela aliciante afabilidade e argumentos persuasivos daquele amigo, porque, dizia ele, se tratava apenas, duma filmagem destinada, tão somente, a experiências de laboratório e a uma discreta exibição, à porta fechada, para meia dúzia de apaixonados da arte muda que, ao tempo, tinha no Max Linder o supremo intérprete de algumas farsalhadas burlescas.
[...]
Lembro-me que os ensaios deste criminoso atentado cinematográfico se realizaram ali para as bandas da Calçada de Santo André e que, durante a sua fixação na câmara operatória, por processos ao tempo quase infantis, eram abruptamente suspensos à passagem de qualquer nuvem que ousadamente se permitia encobrir o sol, ensaios que só recomeçavam quando Sua Excelência se dignava a reaparecer em toda a sua majestosa imponência.
[...]
[A] fita lá seguiu até à sua conclusão e, passado o tempo a que foi sujeita a trabalhos de laboratório, surgiu finalmente na pantalha dum pequeno salão do Palácio Foz, dependência dos escritórios do Raul Lopes Freire, com a reduzida assistência de intérpretes, colaboradores e alguns amigos.
[Eduardo] Brazão, revendo-se como intérprete, no D. Afonso IV, ao terminar a passagem do filme e não contendo o seu entusiasmo exclamou graciosamente:
— Este tipo afinal tem certa jeiteira para o Teatro.
A título de curiosidade devo dizer que o realizador não foi preso. Para mais, desempenhando no filme a personagem do "Justiceiro", o realizador deveria ter sido o primeiro a prender-se a si próprio, dando assim um alto exemplo de consciência e dignidade artística.
»



Daquela que foi a produção maior da Empreza Cinematographica Ideal, existem registos de que RAINHA DEPOIS DE MORTA terá sido avaliada, criticamente falando, como uma mera "imitação dos correspondentes exemplos franceses e italianos"3. Infelizmente, não é conhecido o paradeiro de qualquer material fílmico deste filme para análise contemporânea ou (para já) vindoura.

Notas:
1 in Dicionário do Cinema Português 1895-1961, de Jorge Leitão Ramos (2011, Editorial Caminho).
2 in Cinquenta Anos de Teatro, de Carlos Santos (1950, Editorial Notícias).
3 in O Cinema no "Entroncamento" do "Progresso" — Contributo Para a História do Espectáculo Cinematográfico em Portugal, de Joaquim José Carvalhão Teixeira Santos (2011, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/18244/1/Volume%20I.pdf.

Imagens:
1 Fotograma de RAINHA DEPOIS DE MORTA, INÊS DE CASTRO, Cinemateca Portuguesa.
2 Empreza Cinematographica Ideal, CinePT — UBI.
3 Júlio Costa, fundador da Empreza Cinematographica Ideal e considerado como o primeiro industrial de Cinema em Portugal, CinePT — UBI.

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