sábado, 9 de junho de 2018

A Extrema Fragilidade do Digital



É certo e sabido que a temática da preservação digital, e os paradigmas que regem o seu presente e futuro, é tema querido e anteriormente dissecado neste espaço. Na verdade, dentro e fora do panorama dos arquivos de imagens em movimento, o tópico assume-se permanente na ordem do dia, seja pela divulgação diária das novas apostas técnico-industriais do ramo ou através da reflexão de todas as implicações éticas, culturais e tecnológicas relativas à ausência de uma solução para a efectiva conservação de conteúdos digitais.

Nesse âmbito, a iniciativa da Cinemateca Portuguesa em convidar Frédéric Maire, director da Cinémathèque Suisse e presidente da Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (FIAF), para uma conferência, na passada Segunda-feira, subordinada ao "dilema digital" (sinonimizado por A Incógnita Digital), foi ouro sobre azul. Enquanto principal responsável de uma instituição dedicada à preservação cinematográfica, Maire não escondeu, durante a apresentação que elaborou sobre a missão e as actividades da Cinémathèque Suisse, a sua visão positiva em relação ao potencial da preservação digital. Talvez motivado pelo crescente abandono da produção em formatos analógicos a que assistimos desde 2009, aquela entidade tem desenvolvido uma série de projectos em prol do cinema digital, materializadas na composição de um laboratório digital e na digitalização de obras do seu acervo para consulta pública, investigação e aplicação com vista à promoção do património cultural da Suíça.



No que toca ao tema da preservação digital, e não obstante o positivismo demonstrado, Frédéric Maire também não escondeu as suas reservas sobre o que, actualmente, a tecnologia é capaz e as imensas limitações que ainda apresenta. Essa convicção ficou sublinhada na frase "a extrema fragilidade do digital", que citamos no título deste texto, demonstrada ao longo da sua intervenção e (sobretudo) na discussão que se lhe seguiu.

Não foi — nem nunca é — demais recordar a perecibilidade dos ficheiros nativos digitais, a constante obsolescência de suportes de leitura em função da "lei do mercado" do audiovisual, os inenarráveis exemplos de obras produzidas nos anos 2000 cujos masters numéricos já se encontram corrompidos ou impossibilitados de serem reproduzidos em software mais recente, o prejuízo na qualidade de imagem sempre que se procede a migrações entre sistemas digitais... Em suma, uma confirmação de que a preservação digital continua longe de ser ferramenta arquivística de longo prazo.

Todavia, durante a cativante troca de ideias (é pena que a mesma não tenha sido anotada em audiovisual e/ou por escrito) que se gerou na Sala Luís de Pina, dois conceitos destacam-se e, na nossa opinião, revelam-se inteiramente merecedores de atenção: o regresso à película como opção para a conservação de filmes produzidos em digital, e a necessidade de uma educação cívica e política em prol da preservação digital.



Conforme partilhado por Frédéric Maire, a transferência do digital para a película, com fins de arquivo, é prática recorrente em algumas majors norte-americanas, e o Centre national du cinéma et de l'image animée (CNC) já providenciou a preservação de 20% da filmografia francesa produzida em contextos não-analógicos. Embora tal opção possa acarretar riscos moderados para a integridade da imagem (basicamente, falamos de transformar pixels em fotogramas e vice-versa), esta conversão analógica é a garantia mais fiável de que hoje dispomos.

E a educação para a preservação — o termo consciencialização também se aplicaria — será, definitivamente, um desafio ainda maior do que os inerentes à preservação digital. Numa era marcada pela proliferação de ecrãs e media players, onde stories e snapchats com efémera duração de 24 horas transformaram-se em meios predilectos de registo da realidade contemporânea, em que persiste a resistência dos decisores políticos (nomeadamente, as tutelas da Cultura) em analisar e legislar esta questão, e em que o backup de ficheiros digitais continua a não ser uma "boa prática social", quanto conteúdo poderemos estar a perder para a imaterialidade da computação em nuvem?

Em fria análise, a "extrema fragilidade do digital", a bom tempo enunciada por Frédéric Maire, poderá residir específica e precisamente neste diletantismo tão caracteristicamente humano. Se o celulóide possui a capacidade de reter imagens durante décadas sem particular intervenção da nossa parte, o digital só será inteiramente eficaz se nunca o abandonarmos ao leme das operações.

Imagens:
1 CNN.
2 Frédéric Maire, director da Cinémathèque Suisse e presidente da FIAF, Dominic Favre / RTS.
3 Arquivo fílmico da Cinémathèque Suisse, EM2N.

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