quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

A Febre do Arquivo #1: HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA (2018, Fernanda Pessoa)



Se dúvidas houvessem de que o Cinema de género — no caso em concreto, o das comédias eróticas brasileiras que ficou conhecido como "pornochanchada" — pudesse encerrar "sumo" de contexto e crítica sócio-económicos, o documentário reflexivo HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA dissipará quaisquer dúvidas. Para isso, bastará observar a construção do filme, empreendida pela realizadora Fernanda Pessoa, inteiramente assente numa espirituosa colecção de excertos de filmes (realizados por nomes como David Cardoso, Jean Garrett, Carlo Mossy, entre outros) que, intermediando luxúria e "histórias de sacanagens", oferecem uma (re)leitura histórica da ditadura militar no Brasil entre os anos 60 e 80, desde o boom económico da década de 70, à abordagem ao lugar da mulher e/ou dos valores tradicionais de família na sociedade brasileira, da tortura política à repressão policial, e culminando na clássica luta de classes.

Todavia, numa percepção menos óbvia, o trabalho de arquivo em HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA prima, igualmente, pela demonstração de que a "pornochanchada", e não obstante a notoriedade de que ainda hoje desfruta, é género meritório de uma urgente política estruturada em prol da sua preservação e restauro1. Tal revela-se, primeiro, na paupérrima qualidade (leia-se, descoloração e picotado que foi mantida intencionalmente por Fernanda Pessoa) exibida nos fotogramas de alguns excertos, como também pelas dificuldades que a realizadora sentiu em reunir o maior número possíveis de títulos para a sua "tese": "Procurei os filmes em todos os lugares possíveis: colecionadores privados, cinematecas do Rio e de São Paulo etc. Alguns produtores nem sabem onde estão as cópias originais. Há filmes perdidos talvez para sempre. Há hoje no YouTube, com qualidade muito ruim, saídos de VHS, gravados de exibições em TV etc. Inclusive um dos filmes que usamos só achamos no YouTube"2.







Para além do peculiar cariz da produção dita "pornochanchada", existe a convicção, sobretudo no seio da investigação fílmica brasileira, de que este cinema foi uma reprodução fiel do quotidiano das classes média e baixa (precisamente, as camadas sociais mais retratadas pelo género) do país naquelas décadas. Tal como salienta Valter Vicente Sales Filho3, os "conteúdos presentes nesses filmes, e em muitos outros produtos da cultura de massa, antes de existirem em função de algum interesse consciente, são condicionados inconscientemente pela sociedade que os concebe"; um conceito que o intertítulo final do filme, em fundo apropriadamente negro e que abaixo se reproduz, enuncia por completo. Por estas e muitas mais razões, preserve-se.



Notas:
1 Opinião igualmente partilhada por alguma imprensa especializada brasileira, como na VICE ou na Folha de São Paulo.
2 in Pornochanchadas são quase um grande inconsciente coletivo, diz diretora, Folha de São Paulo online (consultado a 08 e 11 de Dezembro de 2018).
3 in Pornochanchada: Doce Sabor da Transgressão, publicado na revista Comunicação e Educação (São Paulo, Maio/Agosto 1995). Disponível para consulta em www.revistas.usp.br/comueduc/article/viewFile/36159/38879.

Imagens: Pessoa Produções e Studio Riff.

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