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Para os espectadores que presenciaram a revista Ó da Guarda!1, da autoria de de Luis Galhardo e Barbosa Júnior, e estreada a 3 de Setembro de 1907, no Teatro Príncipe Real, foi-lhes reservado o privilégio de assistirem a uma das iniciativas pioneiras de ficção do Cinema Português cujo paradeiro físico encontra-se, actualmente, desaparecido.
Conforme os registos da época, no final do primeiro acto da revista, era anunciado que a actriz principal tinha desaparecido. Nesse momento, descia no palco uma tela branca para a projecção de O RAPTO DE UMA ACTRIZ, curta-metragem em formato que hoje designaríamos por sketch, onde o casal protagonista de Ó da Guarda!, "no Campo Grande, em pleno idílio amoroso", tentava escapar da perseguição movida pela Polícia Savalidade. Quando este conseguia, finalmente, capturar o par amoroso e trazê-los de volta ao palco, o pequeno filme terminava e a revista prosseguia...
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Nascimento Fernandes, actor com indelével filiação aos primeiros anos da produção cinematográfica nacional2 e que em Ó da Guarda! encarnava precisamente o Polícia Savalidade, recordaria mais tarde a sua participação em O RAPTO DE UMA ACTRIZ, na qual "trepava a um poste dos telefones, a procurar descobrir os fugitivos, que davam saltos e trambolhões... Está claro que agarrávamos os pombinhos e os reconduzíamos ao teatro"3.
Realizado por Lino Ferreira, o mentor do projecto e um genuíno pioneiro do Cinema em Portugal, estima-se que O RAPTO DE UMA ACTRIZ, com uma rodagem de exteriores no Campo Grande concluída em apenas cinco horas, teria uma metragem de 200 metros e foi produzida com orçamento de aproximadamente 300 mil réis.
Em retrospectiva (e apesar da escassa informação que chegou aos nossos dias sobre este título), talvez seja tentador encarar o caso de O RAPTO DE UMA ACTRIZ como o protótipo de uma das características mais marcantes do Cinema Português, ou seja, a ligação do espaço fílmico com a ambiência e os mecanismos do Teatro. A consubstancia-lo, bastará invocar uma franja significativa da filmografia de Manoel de Oliveira, indelével e reverente perante aquela expressão artística, e imbuída de um formalismo que alguns autores definiram como "teatro filmado"4.
Afinidades estilísticas e releituras históricas à parte, os factos asseguram que a ficção, no Cinema Português, brotou pela primeira vez no palco de uma "revista à portuguesa".
Notas:
1 A Biblioteca Nacional de Portugal disponibiliza, em formato electrónico, uma cópia do guião desta revista.
2 Da sua carreira no Cinema, destacam-se presenças em títulos como LISBOA, CRÓNICA ANEDOTA (1930, Leitão de Barros), O TREVO DE QUATRO FOLHAS (1936, Chianca de Garcia) e ANIKI-BÓBÓ (1942, Manoel de Oliveira).
3 in O Cais do Olhar, de José de Matos-Cruz (1999, Cinemateca Portuguesa).
4 Uma inscrição que, ao longo da sua vida, Oliveira tanto desdenhava como concordava.
Imagens:
1 Pormenor de cartaz promocional da revista Ó da Guarda!, cinept.ubi.pt.
2 Caricatura de Nascimento Fernandes, um dos protagonistas de O RAPTO DE UMA ACTRIZ, desenvolturasedesacatos e originalmente publicada no Jornal Se7e.
Excelente texto, Sam. E excelente pesquisa também. Será que um dia vamos descobrir as bobinas desta curta algures numa arrecadação? :P
ResponderEliminarCumprimentos cinéfilos :*