sábado, 15 de setembro de 2018

iPhones e 16mm: Um Duelo de Formatos no MOTELX



Do alinhamento da mais recente edição do MOTELX, que terminou no passado Domingo, dois títulos destacaram-se sobejamente. A saber, UNSANE e UN COUTEAU DANS LE COEUR. Não apenas pelos seus desafios narrativos, mas, sobretudo, através das opções estéticas (iPhone e película de 16mm e 35mm, respectivamente) a que se propuseram.

UNSANE, história de stalking e paranóia em coerência com a nossa contemporaneidade digital, foi inteiramente filmado num iPhone 7 Plus, com recurso ao software FiLMiC Pro1 e em resolução 4K, estando o próprio aspect ratio do filme (1.56:1) ao serviço da experiência de visualização audiovisual que os smartphones implementaram2. A escolha deste formato, por Steven Soderbergh, é imediatamente justificada pela ambiência digital (SMS, messaging, redes sociais...) do argumento, e revela-se como um dos melhores — e raros — exemplos modernos em que a opção tecnológica de registo de imagem funciona para a própria exposição narrativa.



No espectro oposto, encontramos a mesma lógica aplicada a UN COUTEAU DANS LE COEUR. Centrado — de um modo que quase poderíamos descrever como nostálgico — na indústria do cinema pornográfico gay de finais dos anos 70, a qualidade granulada do 35mm e, especialmente, do 16mm (o mesmo formato das produções aqui recriadas) é plenamente visível durante toda a longa-metragem. Ao mesmo tempo, os métodos e as possibilidades do analógico ecoam constantemente pelo argumento de Yann Gonzalez.

Recorrentemente, a acção decorre em paralelo à observação de mesas de montagem, de daily rushes, de moviolas e, numa das sequências memoráveis do filme, à intervenção literalmente física (leia-se, arranhar os fotogramas, com um punhal, de forma a se compor letras e frases) na emulsão da película. Texturas de imagem e "rituais" em desuso, que extravasam a circunstância de UN COUTEAU DANS LE COEUR ter sido exibido, no Cinema São Jorge, em DCP.

O destaque destes dois títulos serve não só como tentativa de balanço do Festival, mas também para realçar o conceito de que a escolha entre o analógico e o digital é mais do que uma questão técnica. De facto, a impressão da luz até pode diferir em função do suporte utilizado. Contudo, não deveremos renegar a sua influência na concretização de ambiências visuais, motes narrativos, estados de espírito e correntes artísticas3.



Pelos contornos que este "duelo de formatos" tem assumido nos últimos anos (sobretudo, entre cineastas e cinéfilos), não nos parece desmedido salientar a relação consciente entre a obra acabada e o seu suporte de filmagem. É aquilo que poderíamos definir de matrizes temáticas, isto é, a eleição da película ou do digital como elemento intencional de produção, em função de ideais específicos, e livre de qualquer "constrangimento" de distribuição e exibição. Na exploração desta tese, pode-se incluir a vontade de emular um determinado contexto temporal (JFK, ED WOOD, KODACHROME, BLACKkKLANSMAN), destacar o objecto primordial de um argumento (BLACKHAT), demonstrar a variação de fenómenos de luz (nas filmografias de Stan Brakhage ou Nathaniel Dorsky) ou evidenciar a carga psicológica da própria história (A LISTA DE SCHINDLER, LA HAINE).

Na formulação deste conceito de matrizes temáticas, finalizamos com a ambição de que este seja mais um argumento a favor da convivência frutífera entre película e digital na Sétima Arte.

Notas:
1 Mais informação em www.filmicpro.com.
2 Sobre a "estética iPhone" no grande ecrã, recomendamos este texto de Luís Mendonça, no site À Pala de Walsh.
3 É exemplo disso o manifesto Flamme, publicado na Cahiers du Cinéma em Julho deste ano, e do qual UN COUTEAU DANS LE COEUR é parte integrante.

Imagens:
1 Steven Soderbergh filma Claire Foy com um iPhone 7 Plus (Fingerprint Releasing / Bleecker Street).
2 Vanessa Paradis em UN COUTEAU DANS LE COEUR (CG Cinéma).
3 Tim Burton filmou ED WOOD em película de 35mm Eastman Plus-X, de forma a recriar o visual das produções cinematográficas dos anos 50 (ShotOnWhat?).

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