sábado, 8 de setembro de 2018

Jean-Luc Godard e a Manipulação do Arquivo



pour moi, la grande histoire
c’est l’histoire du cinéma
elle est plus grande que les autres.

(Histoire(s) du cinéma, 2a - Seul le cinéma)

une image n’est pas forte
parce qu’elle est brutale ou fantastique
mais parce que l’association des idées est lointaine.

(Pierre Reverdy, citado em Histoire(s) du cinéma, 4b - Les signes parmi nous)

Teorizemos por um momento — e, nesse processo, afastamo-nos dos habituais conteúdos publicados neste espaço —, centremo-nos nos trabalhos mais recentes de Jean-Luc Godard, e ficamos convencidos de que, como poucos actualmente almejam, o realizador está a produzir uma portentosa análise da memória do Cinema e da História contemporânea com base em fontes arquivísticas da mais variada índole.

A este propósito, poderemos não só invocar o recente LE LIVRE D'IMAGE (exibido, no passado dia 1 de Setembro, pela Cinemateca Portuguesa), experiência radical de experimentalismo da imagem em movimento que destaca blockbusters, os infames "vídeos propagandísticos" do Estado Islâmico e as visões de Hitchcock e de Max Ophuls, como deveremos remontar aos anos anos 80 e 90 e a HISTOIRE(S) DU CINÉMA1.



Projecto vídeo constituído por oito partes, e elaborado ao longo de quase dez anos, HISTOIRE(S) DU CINÉMA continua a ser a melhor demonstração da proficiência de Godard em manipular arquivo, de explanar as imagens como alguém dedicado a colagens sobre uma mesa de trabalho, e de assim "arrancar" teorias, sentimentos, nostalgias e associações. É uma obra inigualável, da qual se retiram os mais diversos significados em função do momento de vida em que a observamos (afirmo-o com conhecimento de causa) e uma considerável "bagagem" de referências culturais, literárias e cinematográficas.

Neste âmbito, e da prolífera filmografia produzida por Jean-Luc Godard desde os inícios dos anos 90, dois títulos sobressaem: JE VOUS SALUE SARAJEVO (1993), ensaio-colagem melancólico sobre a Guerra da Bósnia, inspirado e executado a partir de uma fotografia de Ron Haviv2; e o primeiro capítulo de NOTRE MUSIQUE (2004), intitulado Royaume 1 — Enfer, onde a saturação formal de diversas fontes arquivísticas — documentários, filmes de propaganda e de ficção — serve de base à reflexão em torno da mediatização da violência e do sofrimento humano3 pelas sociedades contemporâneas.



Esses exercícios dedicados à(s) história(s) da Humanidade e do Cinema confluem, provavelmente, em DE L'ORIGINE DU XXIe SIÈCLE (2000), curta-metragem documental que, alegoricamente, entrecruza a realidade das atrocidades da guerra com excertos do Cinema de Maurice Chevalier para manifestar o legado de ruínas que marcou a cronologia do Século XX:



E, portanto, retornamos a LE LIVRE D'IMAGE. Exemplo acabado da filosofia que Gordard impôs ao seu Cinema, a violência das imagens é contraposta com a superlativa dinâmica da associação livre(?) de ideias do cineasta. A sua desconstrução audiovisual assume a forma de arma ideológica, de lucidez crítica, é o espelho de uma mente inquieta e inquietante4, e em incansável combate a tudo o que julgávamos seguro acerca da Sétima Arte, do mundo, da História, em suma, do passado, presente e futuro da nossa própria essência.

Embarquemos ou não na "proposta godardiana" (neste particular, e embora de cariz menos documental, poderíamos acrescentar os casos de FILM SOCIALISME ou ADIEU AU LANGAGE), é incontornável prestar o louvor à manipulação arquivística empreendida por Jean-Luc Godard. Na sua filmografia das últimas três décadas, a imagem de arquivo — em movimento ou não — persiste, oblitera-se e adquire renovados predicados.

Notas:
1 É possível consultar online um guião detalhado dos vários episódios do projecto. Disponível em http://cri-image.univ-paris1.fr/celine/celinegodard.html.
2 ronhaviv.com.
3 Na sua crítica para o The New York Times, Manohla Dargis expõe um interessante ponto de vista sobre as mensagens do filme.
4 Plenamente visível, já em finais dos anos 70, na transcrição das suas palestras em Introduction à une véritable histoire du cinéma (Éditions Albatros, 1980).

Imagens:
1 Casa Azul Films / Ecran Noir productions.
2 Canal+ / Film Comment.
3 Périphéria.

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