sexta-feira, 19 de abril de 2019

A Febre do Arquivo #5: CAMORRA (2018, Francesco Patierno)



"I suppose, in the end, we journalists try — or should try — to be the first impartial witnesses of history. If we have any reason for our existence, the least must be our ability to report history as it happens so that no one can say: 'We didn't know — no one told us".
(Robert Fisk, in The Great War for Civilisation: The Conquest of the Middle East)

Nos inícios dos anos 80, a Radiotelevisione italiana (RAI), em conjunto com estações de televisão locais, dedicaram particular cuidado editorial ao surgimento do crime organizado em Nápoles, num fenómeno que historiadores e media registaram como a Nuova Camorra Organizzata (NCO), vulgo máfia napolitana. A partir desse material, o realizador Francesco Patierno compôs CAMORRA, documentário inteiramente constituído por imagens de arquivo, num produto formal que estabelece uma estreita linha cronológica de causas e eventos, ao mesmo tempo que lança sementes para o debate sobre a qualidade das coberturas noticiosas contemporâneas.

Segundo Patierno, CAMORRA foi idealizado com o propósito (tal como se pode constatar no material publicitário do filme) de fazer o retrato sócio-antropológico da dura, se não mesmo crua e sombria, condição humana na capital da província da Campânia, na qual assentava uma actividade criminal de singular geografia, imensa abrangência social e capaz da mais inescrupulosa punição. Tais intuitos, com a eficácia que apenas o registo audiovisual da realidade consegue reter, são plenamente materializados pelo documentário desde muito cedo. Através da recuperação arquivística de reportagens nas ruelas mais esconsas de Nápoles, entrevistas com "operacionais" (dos mais jovens aos de idade adulta) ou vítimas da NCO, da exibição de lenientes forças políticas face ao então "estado das coisas", e das imagens do principal rosto — o infame Raffaele Cutolo — do crime organizado daquela cidade, CAMORRA traça, activamente, um contexto sócio-económico que o espectador rapidamente apreende.



Nesse processo documental, subjaz a evidência — talvez inconsciente, certamente nada secundária — de uma metodologia de jornalismo que, actualmente, encontra-se virtualmente extinta. CAMORRA permite, amiúde, a observação de um muckraking de corajosa denúncia, de políticas editoriais imparciais e livres de interesses financeiros nem preocupações sensacionalistas, do repórter que arriscava a própria vida em prol de um exposé de iminente humanismo.

Por via da veracidade contida no seu trabalho de arquivo, CAMORRA desafia, igualmente, o "calibre" do próprio espectador moderno. Será pragmático disto mesmo a reacção das duas senhoras que se sentaram alguns lugares à minha direita, durante a sessão do filme na mais recente edição do Festa do Cinema Italiana; "não consigo mais ver isto", sussurraram à medida que se encaminhavam para a saída, poucos minutos antes dos créditos finais. Não obstante a imensa produção criativa que tem surgido sobre o tema — na Literatura, no Cinema e na Televisão, com substantivo êxito —, é evidente que a proximidade das imagens de arquivo à incondicional realidade do nosso mundo ainda consegue bater a ficção aos pontos.

Uma nota final para o estado de preservação do material noticioso utilizado em CAMORRA. Fruto da actividade desenvolvida pela Rai Teche (o organismo responsável pelo arquivo da televisão pública italiana), cujo formato e esquema cromático são integralmente respeitados pela montagem de Francesco Patierno, é necessário elogiar a qualidade da conservação destas imagens em movimento, que se constituem como importantes registos históricos para a compreensão sociológica da Itália e, por inerência, da própria Europa comunitária.

[Imagens: Rai Cinema / Rai Teche / Todos Contentos Y Yo Tambien.]

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